quarta-feira, 1 de abril de 2020

La bibliothèque en feu, 1974. Maria Helena Vieira da Silva



La bibliothèque en feu [A biblioteca em fogo]

Esta obra insere-se numa das temáticas privilegiadas de Vieira da Silva, as bibliotecas. Há temas que ressurgem periodicamente desde cedo, mas de forma diferente, sem analogias de séries mas antes tratados, retomados, desenvolvidos ou metamorfoseados em múltiplas direcções. Vieira da Silva sempre evocou a importância da biblioteca do avô materno, na casa onde viveu entre 1911 e 1926. Educada em casa, num mundo de adultos, a jovem Maria Helena fazia da imaginação e dos livros poderosos aliados na sua solidão e na descoberta do mundo. A biblioteca terá sempre um lugar fundamental na vida e obra da artista, assim como o carácter mágico e o mistério que a envolvem. Espaço simbólico e importante referência, a biblioteca foi representada inúmeras vezes como estrutura identificável e metáfora dos universos que concentra. Mas o entendimento da pintura de Vieira da Silva não se cinge a uma mera análise iconográfica. Os temas de eleição, ressurgindo no tempo, não interferem por si só na essência da obra: um tabuleiro de xadrez ou uma cidade podem ter correspondência com uma biblioteca, uma gare, uma estante, na pesquisa da espacialidade e orientando o seu mundo imagético.

Já em 1949, uma primeira Biblioteca constituiu um marco num novo tipo de concepção espacial, re-criando a perspectiva clássica numa multiplicação dos pontos de fuga. Noutra direcção de pesquisa da definição do espaço e numa fase muito mais matura do seu percurso, La bibliothèque en feu (A biblioteca em fogo) constitui outro exemplo notável de estruturação do espaço. A grelha tende a suplantar a perspectiva – elementos estruturais e recorrentes do trabalho pictórico de Vieira da Silva – e o plano remete para a bidimensão, para a essência física da pintura. Tal como outros elementos construtivos o grande formato do suporte foi também equacionado. A tela está imperceptivelmente cosida de alto a baixo exactamente na vertical a meio da pintura, unindo duas partes iguais. Um quadriculado ocupa toda a superfície, com um tratamento pictórico diferente nos quadrados lisos da moldura; mais elaborado e gráfico na parte interna. A pintura divide-se em superfícies aparentemente regulares, sendo os quadrados da parte central subdivididos em dois ou quatro. A grelha confunde-se com a quadrícula cujo ritmo regular não sossega. A luminosidade e o tratamento diferente entre o centro e o exterior produz um obscurecimento da parte central, sugerindo profundidade e concentração do espaço. Cada uma das zonas tem uma organização e uma dinâmica próprias que, com a instabilidade da cor e da luz, realçam a importância das margens. Com uma perícia e uma minúcia notáveis, cada traço e cada pincelada são doseados para obter um efeito de profundidade ilusório, meramente pictural. A cor tem um papel fundamental na espacialidade própria de cada enclave. Associado ao fogo, o vermelho é a cor predilecta das bibliotecas de Vieira; corresponde a um certo intimismo e à evocação de espaços interiores.

Marina Bairrão Ruivo
Maio de 2010

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